Maria e eu
José Serra
Artigo publicado em O Globo, em 24/04/2010
Conheci Maria da Conceição Tavares em 1966, no Chile.
Estava exilado e começando, tardiamente, a estudar economia. No Brasil, eu havia cursado quatro anos de engenharia.
Fiquei assombrado com ela. Eu a conhecia pelos relatos dos economistas cariocas Cláudio Salm e Francisco Biato, com quem dividia o apartamento na capital chilena. Falavam-me dela o Carlos Lessa, que estava na CepalIlpes, e o Aníbal Pinto, considerado seu mestre por ela — e meu também.
Como chefe do escritório da Cepal no Brasil, dom Aníbal, grande economista chileno, deu à Conceição a ideia e, por que não dizer, a orientação para um estudo que se tornou um clássico: “Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil”. Um trabalho que eu já lera e virara pelo avesso. Aliás, nosso mestre foi também o inspirador de outro estudo clássico, “Quinze anos de política econômica no Brasil”, do Lessa.
Por que o assombro? Porque ela parecia um vulcão que expelia inteligência, criatividade, veemência, gritos.
Opinava sobre todos os temas e massacrava eventuais contestadores do que dizia, às vezes até com ameaças de beliscões. Massacres? Que nada, era só estilo.
Ela se mudou com seus dois filhos para o Chile, em 1968, e ficou até 1972, trabalhando na Cepal. Descobri logo que prestava muita atenção e sempre levava em conta, do seu jeito, aquilo que os outros diziam. Não era dogmática e mudava de ideia segundo a qualidade dos argumentos alheios ou as mudanças das realidades. Respeitava e elogiava quem lhe ensinara coisas, como era o caso, entre vários, do ex-ministro Otávio Bulhões. E era de uma generosidade insuperável no trabalho intelectual, doando ideias para amigos aproveitarem em seus trabalhos e jamais reclamando os créditos. Marca registrada, também, do Aníbal Pinto.
Quando eu estava na Cepal, no final de 1970, escrevemos juntos um artigo sobre a economia brasileira, que acabou virando um texto importante na época: “Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento recente do Brasil”, título sugerido por Aníbal Pinto. Lembro que passei uns dias com ele na sua casa de praia, revisando linha por linha. O Cláudio Salm escreveu recentemente uma longa e interessante análise sobre esse trabalho.
Uma coisa pouco ou nada sabida: durante alguns meses, em 1972, a Conceição assessorou o governo chileno, para contribuir nas tentativas de dar algum estabilidade à economia, assolada pelo galope da superinflação e do desabastecimento, que levava ao mercado negro. Interrompeu esse trabalho quando voltou ao Brasil, e sugeriu-me substituí-la, coisa que fiz, não por achar que, àquela altura, as coisas iriam terminar bem, mas para tentar alargar os limites do possível. Cheguei até a elaborar o esboço de um plano de estabilização e arrumação econômica, bancado pelo ministro da Fazenda, mas que virou pó diante do acirramento dos conflitos e da crise.
Oito momentos inesquecíveis com a Conceição:
• eu, de cama durante semanas, com febre tifoide grave e reincidente, entupido de antibióticos enjoativos, ouvindo dela a notícia da assinatura do AI-5;
• vendo, em sua casa, o Neil Armstrong pisar na lua e falar com um Nixon eufórico;
• depois de um jantar, na casa do Aníbal Pinto, minha mulher, Mônica, chilena, sorridente mas abismada, contemplando um grupo de pessoas — a Conceição, eu, o Aníbal e a Malucha, sua mulher e bailarina, como a Mônica — cantando e dançando samba puladinho, que ela nunca tinha visto na vida. Conceição tinha o samba no pé e, confesso, foi com ela que aprendi de verdade a deixar o ritmo comandar as pernas;
• de madrugada, na maternidade, na mesma sala onde a Mônica sofria as dores do parto de nossa filha, discutindo política e economia com a Conceição, sempre enfática, embora mais doce do que de costume, dadas as circunstâncias;
• na Cepal, de manhã, ela entrando na sala do dom Aníbal, com quem eu trabalhava, e ele dizendo: “A ver, Doña Emergencia, cuál es el problema grave y urgente en el mundo hoy día? A ver!”
• por incrível que pareça, de novo na maternidade, nas mesmas circunstâncias, quando meu filho nasceu, em junho de 1973 — ela estava de passagem por Santiago e passamos a noite prevendo o golpe que iria derrubar Allende pouco mais de dois meses depois;
• no Rio, em meados de 1977, quando voltei do exílio, então nos Estados Unidos, por um mês e meio apenas — depois de prescrita uma condenação que tivera —, e me hospedei no apartamento dela, na Praia do Flamengo. Um calor daqueles, sem ar refrigerado, e conversa durante toda a madrugada, ela controlando o volume da voz para não acordar os filhos. Lembro muito bem que Conceição e o Lessa, entre outros, tiveram grande influência para que eu fosse convidado a ser professor da Unicamp, ao voltar definitivamente para o Brasil, em 1978. Lá, fomos colegas e continuamos a conviver;
• em São Paulo, na casa dos professores João Manoel Cardoso de Mello e Liana Aureliano, em 1980, ela fazendo 50 anos de idade e ouvindo o ”Parabéns pra você“.
Conceição sempre teve hábitos austeros, noves fora a modéstia dos seus rendimentos face aos encargos familiares.
Eu implicava com sua geladeira, invariavelmente semivazia… Ela poderia ter ganhado muito dinheiro, na iniciativa privada, porque possuía uma boa formação em matemática, além do seu conhecimento de economia, dois requisitos importantes para faturar no mercado financeiro. Manteve-se, no entanto, sempre professora e pesquisadora, sua grande vocação. Na política, fora próxima do PCB, nos anos 50, mas não parecia ter paciência para uma militância organizada. Por isso, me surpreendi quando ingressou no PT e se elegeu deputada, talvez na campanha mais barata já feita no Rio de Janeiro. Desistiu, porém, de concorrer a outro mandato e retomou sua vida de sempre.
Ao longo dos anos 80, com meu afastamento gradual da atividade acadêmica, nossos encontros foram se tornando mais raros. Mas carrego sempre comigo o afeto e a admiração por esta amiga tão inteligente, austera, excêntrica, doce e generosa.
Artigo publicado em O Globo, em 24/04/2010
Conheci Maria da Conceição Tavares em 1966, no Chile.
Estava exilado e começando, tardiamente, a estudar economia. No Brasil, eu havia cursado quatro anos de engenharia.
Fiquei assombrado com ela. Eu a conhecia pelos relatos dos economistas cariocas Cláudio Salm e Francisco Biato, com quem dividia o apartamento na capital chilena. Falavam-me dela o Carlos Lessa, que estava na CepalIlpes, e o Aníbal Pinto, considerado seu mestre por ela — e meu também.
Como chefe do escritório da Cepal no Brasil, dom Aníbal, grande economista chileno, deu à Conceição a ideia e, por que não dizer, a orientação para um estudo que se tornou um clássico: “Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil”. Um trabalho que eu já lera e virara pelo avesso. Aliás, nosso mestre foi também o inspirador de outro estudo clássico, “Quinze anos de política econômica no Brasil”, do Lessa.
Por que o assombro? Porque ela parecia um vulcão que expelia inteligência, criatividade, veemência, gritos.
Opinava sobre todos os temas e massacrava eventuais contestadores do que dizia, às vezes até com ameaças de beliscões. Massacres? Que nada, era só estilo.
Ela se mudou com seus dois filhos para o Chile, em 1968, e ficou até 1972, trabalhando na Cepal. Descobri logo que prestava muita atenção e sempre levava em conta, do seu jeito, aquilo que os outros diziam. Não era dogmática e mudava de ideia segundo a qualidade dos argumentos alheios ou as mudanças das realidades. Respeitava e elogiava quem lhe ensinara coisas, como era o caso, entre vários, do ex-ministro Otávio Bulhões. E era de uma generosidade insuperável no trabalho intelectual, doando ideias para amigos aproveitarem em seus trabalhos e jamais reclamando os créditos. Marca registrada, também, do Aníbal Pinto.
Quando eu estava na Cepal, no final de 1970, escrevemos juntos um artigo sobre a economia brasileira, que acabou virando um texto importante na época: “Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento recente do Brasil”, título sugerido por Aníbal Pinto. Lembro que passei uns dias com ele na sua casa de praia, revisando linha por linha. O Cláudio Salm escreveu recentemente uma longa e interessante análise sobre esse trabalho.
Uma coisa pouco ou nada sabida: durante alguns meses, em 1972, a Conceição assessorou o governo chileno, para contribuir nas tentativas de dar algum estabilidade à economia, assolada pelo galope da superinflação e do desabastecimento, que levava ao mercado negro. Interrompeu esse trabalho quando voltou ao Brasil, e sugeriu-me substituí-la, coisa que fiz, não por achar que, àquela altura, as coisas iriam terminar bem, mas para tentar alargar os limites do possível. Cheguei até a elaborar o esboço de um plano de estabilização e arrumação econômica, bancado pelo ministro da Fazenda, mas que virou pó diante do acirramento dos conflitos e da crise.
Oito momentos inesquecíveis com a Conceição:
• eu, de cama durante semanas, com febre tifoide grave e reincidente, entupido de antibióticos enjoativos, ouvindo dela a notícia da assinatura do AI-5;
• vendo, em sua casa, o Neil Armstrong pisar na lua e falar com um Nixon eufórico;
• depois de um jantar, na casa do Aníbal Pinto, minha mulher, Mônica, chilena, sorridente mas abismada, contemplando um grupo de pessoas — a Conceição, eu, o Aníbal e a Malucha, sua mulher e bailarina, como a Mônica — cantando e dançando samba puladinho, que ela nunca tinha visto na vida. Conceição tinha o samba no pé e, confesso, foi com ela que aprendi de verdade a deixar o ritmo comandar as pernas;
• de madrugada, na maternidade, na mesma sala onde a Mônica sofria as dores do parto de nossa filha, discutindo política e economia com a Conceição, sempre enfática, embora mais doce do que de costume, dadas as circunstâncias;
• na Cepal, de manhã, ela entrando na sala do dom Aníbal, com quem eu trabalhava, e ele dizendo: “A ver, Doña Emergencia, cuál es el problema grave y urgente en el mundo hoy día? A ver!”
• por incrível que pareça, de novo na maternidade, nas mesmas circunstâncias, quando meu filho nasceu, em junho de 1973 — ela estava de passagem por Santiago e passamos a noite prevendo o golpe que iria derrubar Allende pouco mais de dois meses depois;
• no Rio, em meados de 1977, quando voltei do exílio, então nos Estados Unidos, por um mês e meio apenas — depois de prescrita uma condenação que tivera —, e me hospedei no apartamento dela, na Praia do Flamengo. Um calor daqueles, sem ar refrigerado, e conversa durante toda a madrugada, ela controlando o volume da voz para não acordar os filhos. Lembro muito bem que Conceição e o Lessa, entre outros, tiveram grande influência para que eu fosse convidado a ser professor da Unicamp, ao voltar definitivamente para o Brasil, em 1978. Lá, fomos colegas e continuamos a conviver;
• em São Paulo, na casa dos professores João Manoel Cardoso de Mello e Liana Aureliano, em 1980, ela fazendo 50 anos de idade e ouvindo o ”Parabéns pra você“.
Conceição sempre teve hábitos austeros, noves fora a modéstia dos seus rendimentos face aos encargos familiares.
Eu implicava com sua geladeira, invariavelmente semivazia… Ela poderia ter ganhado muito dinheiro, na iniciativa privada, porque possuía uma boa formação em matemática, além do seu conhecimento de economia, dois requisitos importantes para faturar no mercado financeiro. Manteve-se, no entanto, sempre professora e pesquisadora, sua grande vocação. Na política, fora próxima do PCB, nos anos 50, mas não parecia ter paciência para uma militância organizada. Por isso, me surpreendi quando ingressou no PT e se elegeu deputada, talvez na campanha mais barata já feita no Rio de Janeiro. Desistiu, porém, de concorrer a outro mandato e retomou sua vida de sempre.
Ao longo dos anos 80, com meu afastamento gradual da atividade acadêmica, nossos encontros foram se tornando mais raros. Mas carrego sempre comigo o afeto e a admiração por esta amiga tão inteligente, austera, excêntrica, doce e generosa.
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