A saúde como sacerdócio
Eu estava deitado com minha neta, que se ajeitava para dormir e conversava comigo e com o irmão, com quem divide o beliche. Havia acabado de chegar da Bahia, no sábado à noite, e fora vê-los. Foi nesse momento de mansidão que um assessor entrou na casa, disse que precisava falar-me e deu a notícia terrível: o Barradas tivera um ataque cardíaco e morrera. A calma que me dominava deu lugar a uma alucinante sensação de fragilidade e revolta, com o desaparecimento gratuito de alguém tão bom e tão próximo.
No final de março de 1998, quando aceitei o convite de Fernando Henrique Cardoso para assumir o Ministério da Saúde, fui tomado por uma ideia fixa: levar o Luiz Roberto Barradas comigo, para introduzir-me no mundo da saúde, instruir-me sobre o funcionamento do ministério, ajudar-me a escolher os colaboradores e dar os primeiros passos naquela área imensa, difícil e tão essencial para o nosso povo.
Ele era secretário-adjunto em São Paulo, não queria deixar o posto, mas aceitou afastar-se por uns três meses e trabalhar comigo em Brasília, viajando também pelo Brasil. Tempos depois, ficou comigo mais seis meses. De conhecidos, nos tornamos desde então amigos de infância, com um bônus interessante: um achando o outro engraçado no seu jeito de ser. E certa cumplicidade no estilo de trabalho.
A assessoria que me prestou foi impecável, condição mesmo para que, ao longo de quatro anos, déssemos passos largos no avanço da saúde no Brasil. Desde aquela época, costumo esclarecer que foi com o Barradas que aprendi, logo no início, a diferença entre vírus, verme, micróbio e bactéria…
Barradas era médico sanitarista, dedicado de corpo e alma às políticas públicas de saúde. Essa especialidade é, por sua natureza, cativa do setor governamental e, portanto, recebe salários relativamente modestos. Na verdade, a área dos sanitaristas exige muita vocação, um quase sacerdócio.
Não é pouca a contribuição que eles têm dado ao nosso país. Por exemplo, as campanhas de vacinação, numerosas, abrangentes e benfeitas, num país tão grande, heterogêneo e repleto de localidades pobres. Ou a criação do SUS, um sistema único da saúde inovador entre os países em desenvolvimento, que só precisa de governos bons para funcionar melhor.
A implantação e a consolidação do sistema de Organizações Sociais na gestão de unidades de saúde em São Paulo, iniciadas pelos governos Covas e Alckmin, que deram tão certo e hoje se reproduzem em outros Estados, deveram-se muito ao descortino e à capacidade de fazer acontecer do Barradas.
Ele teve também um papel decisivo no fortalecimento das entidades filantrópicas sérias e na aliança do governo com os hospitais universitários, ambos peças fundamentais do SUS. Para ele era clara a distinção que transformamos em norma no Ministério da Saúde: nem tudo o que é público é necessariamente governamental. Um hospital como o das Irmãs Marcelinas atende de graça e a qualquer pessoa: por isso é público, embora não pertença ao governo.
Muitos programas e ações de saúde tiveram a mão, a cabeça, a vontade e a dedicação do médico sanitarista Luiz Roberto Barradas.
De programas como o de distribuição gratuita de remédios -o Dose Certa- à primeira lei antifumo do Brasil. Da implantação do Instituto do Câncer Octavio Frias de Oliveira, desafio que fiz a ele quando foi meu secretário, ao Hospital Estadual de Ribeirão Preto, e outros nove hospitais estaduais somente nos últimos quatro anos. Da expansão da Furp -fábrica estadual de medicamentos- à produção da vacina antigripe, no Butantan. Da concepção e implantação dos Ambulatórios Médicos de Especialidades (AMEs) à ideia original das AMAs -Atendimento Médico Ambulatorial-, implementada quando fui prefeito de São Paulo.
Os AMAs, que hoje recobrem a cidade de São Paulo, foram reproduzidas no Rio de Janeiro, como UPAs; os AMEs, no futuro próximo, virarão programa nacional, encurtando a demora em consultas e exames no âmbito do SUS.
Ficamos agora sem um grande servidor público -modesto, criativo, competente e sensato. Foi-se um amigo querido e o Brasil perdeu um homem de grande valor. Uma tragédia. Como ouvi dele mais de uma vez, sua motivação era “ajudar as pessoas”.
Ausentou-se muito prematuramente, mas sua família e seus amigos podem orgulhar-se: ele cumpriu como ninguém seu generoso propósito de vida e continuará a ser um grande exemplo para os que compartilham sua vocação.
JOSÉ SERRA, 68, foi ministro da Saúde (1998-2002), prefeito de São Paulo (2005-06) e governador de São Paulo (2007-10). É candidato à Presidência pelo PSDB.
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