Terça, 27 de outubro de 2009, 08h05
Doenças da República e da Democracia
Marília Muricy
De Salvador (BA)
De Salvador (BA)
Infelizmente, no Brasil, ataques à República e à Democracia tornaram-se corriqueiros, sem que as grandes massas populares consigam ultrapassar a barreira da impotência, face à dilapidação de seu patrimônio ético e político.
Na verdade, Republica e Democracia, entre nós padecem de certas doenças graves para as quais ainda não se encontrou remédio eficaz. Correndo o risco das simplificações, podemos identificar tais patologias do nosso modelo político na sobrevivência das oligarquias, nos excessos de uma burocracia ritualística, nos baixos níveis de cidadania e, por fim, na ausência de controle social sobre o poder da mídia.
A sobrevivência das oligarquias e todos os seus filhotes, como o clientelismo, o patrimonialismo, a desigualdade nas competições mercadológicas e políticas está ainda fincada em um passado histórico "de barões" em que as frágeis conexões entre o direito e a política permitiam manipulações do processo eleitoral de toda espécie, diante de uma cidadania frouxa e incipiente que, por muito tempo, enxergou as migalhas que recebia, como "benesses" do Estado tutor. E ainda hoje escasseiam instrumentos para tornar mais igualitário o processo eleitoral, tal como o financiamento público das campanhas; partidos fortes e representativos, diálogo entre as lideranças partidárias e a população de eleitores, utilização pelas agências políticas dos espaços midiáticos com o objetivo de fortalecer o debate e educar para a cidadania. Enfim: partidos que, em lugar de funcionarem como lugares de manobra, em uma guerra de regras amesquinhadas, contribuíam, efetivamente, nas tensões que entre si mantém, para uma verdadeira e saudável alternância no poder.
Parodiando o jornalista Samuel Celestino, em sua coluna de 14-09 no jornal "A Tarde", talvez assim possamos afastar os espantalhos que hoje, ocupando as cadeiras do poder, assustam o beija-flor, mas atraem os urubus.
Pois bem. A indiferença revelada por parte significativa dos cidadãos quanto ao destino do que lhe pertence, atua também como estímulo para deformar a burocracia estatal, que, em lugar de funcionar como garantia de racionalidade das funções e serviços públicos em uma sociedade complexa, passa à condição de excesso ritualístico que termina por entravar a ação do Estado, lembrando algumas vezes cenários kafkianos. Não se pode ignorar que tais desfigurações de nossa estrutura burocrática relacionam-se diretamente com a desconfiança das instituições sobre elas mesmas, fazendo parecer que, em cada passo da administração publica, a preocupação com o controle sufoca a eficiência do resultado, quando deveria assegurá-la. Por outro lado, todo um conjunto de leis ultrapassadas, inflação legislativa, multiplicidade e dispersão de órgãos "legisferantes" funciona como "camisa de força" para os órgãos de controle interno criados pela Constituição, os quais, seja por obediência ao principio da legalidade, seja pela carência de criatividade, na interpretação mais justa e produtiva das leis, terminam atuando como bloqueios para a dinâmica administrativa.
Finalmente, mas nem por isso menos relevante, os males da mídia brasileira que, sustentada na sagrada e inabdicável proteção constitucional do direito a informação, às vezes termina por desviar-se de sua função no Estado Democrático de Direito, para ferir suas matrizes. Livre para construir imagens falsas e falsas lideranças, também o é para destruir reputações segundo os interesses de seus controladores, que seguem seu curso indiferentes à Constituição, cujo artigo 221 estabelece como princípios a serem observados pela programação das emissoras de rádio e televisão a "preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família", entre outros.
Posso parecer, mas não sou pessimista. A despeito de seus muitos problemas, a Republica e a Democracia brasileiras permanecem de pé, resistindo às tentativas, por parte daqueles que não precisam do espaço político porque dispõem de instrumentos tradicionais de manipulação do voto, de desqualificar o processo eleitoral.
Superamos a Ditadura, caminhamos para a anistia, elegemos um ex-metalúrgico como presidente da Republica. O caminho a percorrer é, entretanto, ainda longo e pressupõe mudanças estruturais, no campo da nossa cultura política. Tome-se como exemplo o que agora ocorre na França, com a mobilização popular em torno do julgamento do ex-premier Villepin, acusado de tentar manchar a imagem de Sarkozy, quando ainda no exercício do poder. Comparado com a qualidade das freqüentes investidas, no Brasil, de autoridades públicas contra outras autoridades públicas, o exemplo francês não apresenta maior gravidade. Mas, enquanto ali, toda sociedade acompanha interessada o desdobramento do processo, no Brasil, séria acusação contra o presidente da Republica transforma-se em um simples processo por injúria, lançado entre os muitos que se acumulam nos Tribunais Superiores, sem que a opinião pública se faça ouvir.
Mas há também razões para alimentar esperanças. Até 5 de junho de 2010, o Congresso Nacional terá que sair do casulo de intrigas e acobertamentos mútuos entre seus membros, para posicionar-se frente à Emenda de iniciativa popular voltada a negar registro eleitoral para todos os condenados, em primeira instância, por crimes como racismo e outros tantos que atentam contra a dignidade humana. Falta muito sem dúvida, porém o futuro é construção nossa e abdicar da luta é renunciar à condição humana, efeito que nenhum regime político, felizmente, conseguiu ainda realizar. Afinal, como observa Susan Sontag, em sua obra "Doença Como Metáfora", "a sociedade nunca pega uma doença fatal".
Marilia Muricy Machado Pinto, mestre em Ciências Humanas, doutora em Filosofia do Direito, é ex-secretária da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia..
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