Veja Augusto Nunes 13 de novembro de 2009
Na primeira viagem ao exterior como ex-presidente, Fernando Henrique embarcou para Paris e se hospedou, com Ruth, na casa de um amigo. Ali, foi surpreendido por um telefonema de Lula, que estava a caminho de Davos, na Suiça. Depois da introdução amistosa, o novo presidente informou ao antecessor que Antonio Palocci, ministro da Fazenda, gostaria de dizer-lhe algo. “Só queria agradecer pelo bom trabalho”, ouviu Fernando Henrique.
A frase se referia ao comportamento de FHC no período que separou o triunfo eleitoral e a posse de Lula. O governo não só abriu as portas a todas as informações disponíveis como condicionou à aprovação do sucessor a tomada de decisões que produzissem efeitos a longo prazo. Mas, como a política econômica não sofreu mudanças relevantes, é possível que Palocci estivesse pensando num universo mais abrangente ao dizer a frase revelada só agora, quase sete anos depois.
Esta e outras revelações temperam o longo e denso depoimento a VEJA.com que começa a ser divulgado hoje. Nestas cinco partes, que compõem o primeiro dos três blocos da entrevista, Fernando Henrique reconstitui pedagogicamente fatos históricos deformados pela má memória, pela má vontade ou pela má fé. A inflação, por exemplo, não foi derrotada por Lula em 2003, mas por FHC em 1994, quando o então ministro da Fazenda de Itamar Franco comandou a implantação do Plano Real, que o PT primeiro rechaçou e, depois, prometeu revogar.
O ex-presidente conta que, ao longo de oito anos, todos os projetos enviados ao Congresso pelo governo foram rejeitados pelo PT. Comenta o processo de privatização, analisa o papel das agências reguladoras, pulveriza acusações e invencionices, fala com franqueza dos erros que cometeu, diz o que pensa sobre a Petrobras ou a Vale, trata sempre com desembaraço e serenidade os numerosos temas propostos.
Tudo somado, o primeiro bloco do depoimento informa que o Brasil de 2009 não existiria se não tivesse existido um governo que modernizou extraordinariamente o país ─ apesar da resistência feroz do PT.
Entrevista com FHC, 2° bloco: “Pactos com o diabo são perigosos. Às vezes ele ganha”
18 de novembro de 2009
“A impunidade é a mãe da corrupção”, lembra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso neste segundo bloco da entrevista exclusiva concedida a VEJA.com. Ele próprio ressalva que a frase não é original. Mas parece uma novidade extraordinária ouvi-la na voz de um político brasileiro. No paraíso da ladroagem impune, no grande viveiro de quadrilhas federais, só homens públicos honrados ousam dizer coisas que soam elementares em paragens civilizadas.
A preservação da honradez num país assolado pela corrupção o autoriza a afirmar, também, que “temos tudo da democracia, menos a igualdade perante a lei”. Ou a contestar a regra recentemente enunciada por Lula. ”Nunca fiz aliança com Judas”, discorda Fernando Henrique. Esse tipo de acerto conduz ao mensalão, exemplifica. Portador de um currículo sem parentesco com prontuários, o ex-presidente discorre sobre todos os temas invocados por adversários interessados em arranhar-lhe a imagem.
Nas cinco partes do segundo bloco, fala sobre o Proer, o Proesp, a emenda da reeleição, a versão da compra de votos, a nomeação de Renan Calheiros para o Ministério da Justiça, o Congresso que conheceu e o que hoje espanta o Brasil. Entre outras revelações históricas, conta que o governo do PT negou-se a examinar um acordo de princípios com o PSDB que, sem eliminar a fronteira que separa governo e oposição, garantisse a aprovação de projetos de interesse nacional.
Favorável à reeleição, aponta os riscos embutidos num terceiro mandato. Analisa o aparelhamento de fundos de pensão e empresas estatais por militantes partidários. Rememora a recuperação do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, qualifica o PAC de peça publicitária e enumera algumas obras físicas de especial relevância concluídas durante seu governo. Milhões de brasileiros provavelmente ignoram, por exemplo, que Fernando Henrique inaugurou o gasoduto que liga a Bolívia ao Rio Grande do Sul.
Não foi pouca coisa, mas ele acredita que será lembrado por outros feitos ─ a vitória sobre a inflação, por exemplo. Talvez seja lembrado também por ter rejeitado a fórmula do vale-tudo. Pactos com o diabo são perigosos, adverte. “Às vezes, o diabo ganha”. Ultimamente, tem ganhado todas.
Entrevista com FHC: a última etapa do passeio pela história real de um Brasil desmemoriado
Veja Augusto Nunes 20 de novembro de 2009
Na América do Sul, governos que se qualificam de esquerdistas usam o Estado como instrumento de dominação e procuram consolidar o populismo autoritário, constatou Fernando Henrique Cardoso no terceiro e último bloco da entrevista concedida a VEJA.com. Uma semana depois, no artigo publicado pelo Estadão com o título Para onde vamos?, o ex-presidente se apoiaria nessa frase para desenvolver a tese segundo a qual a democracia brasileira se arrisca a desembocar num “subperonismo”.
Nesse e em vários outros momentos ─ ao rever os conceitos de “esquerda” e “direita”, por exemplo ─ fundiram-se no entrevistado o político FHC e o sociólogo que reivindica com naturalidade a condição de intelectual. “Intelectual é alguém que formula imagens da sociedade e, nesse sentido, é claro que sou”, resume, contendo o espanto que lhe causa a conotação negativa atribuídas ultimamente a palavras como intelectual ou elite. Mas continuará nadando contra a corrente com prazer ─ e alguma ironia, sugere o título do próximo livro: “Lembrando o que escrevi”.
O ex-presidente completou o passeio de quase duas horas pela história real do Brasil com escalas em numerosas estações, todas relevantes. Recordou os programas sociais localizados na gênese do Bolsa Família, analisou o sistema de saúde e questões ligadas à educação, alertou para a obesidade da máquina administrativa, discorreu sobre as diferenças entre a política externa adotada por seu governo e a instituída desde janeiro de 2003.
No mesmo tom de voz, registrou o crescente prestígio internacional do Brasil, lastimou os equívocos cometidos na crise em Honduras e, sempre bem humorado, atribuiu a agressividade crescente de Hugo Chávez ao preço do petróleo. “O Chávez que conheci foi o do barril a 15 dólares”, comparou. Longe da aposentadoria, como reitera diariamente a agenda movimentadíssima, nem sequer examina a possibilidade de voltar a ocupar cargos públicos. “Cada um é bom para determinado momento”, repete. “E o Brasil fica melhor a cada governo, até porque não para de crescer”.
A entrevista com Fernando Henrique Cardoso confirma que, nem faz tanto tempo assim, existiu vida inteligente no centro do poder. Também ensina que é possível fazer política sem revogar o convívio dos contrários e sem recorrer à lei da selva para ganhar a eleição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.