Extensão de Lula, Dilma sai da urna como incógnita
Nos dias que antecederam o primeiro turno, o comitê de Dilma Rousseff tomou uma decisão temerária: reduziu a presença de Lula na campanha. Concluiu-se que chegara a hora de mostrar que a candidata tinha luz própria. Sobreveio o segundo turno. E Lula foi devolvido ao primeiro plano.
Coadjuvante da própria candidatura, Dilma chega ao final da campanha como uma incógnita. Um enigma que hipnotiza 55% dos votos, segundo o Datafolha. Na expedição eleitoral, ela encarnou Lula. Mimetizou-o no discurso e nos gestos. Elegendo-se, terá de reassumir o próprio corpo antes de assumir a Presidência.
Cara amarrada, tecnocrata de mostruário, Dilma teve a fama de durona recoberta por densas camadas de marketing. Fabricada por Lula, a candidata foi envernizada pelo jornalista João Santana. Atrás do marqueteiro, uma equipe de cerca de 180 pessoas.
Nos comícios, uma fórmula imutável. Primeiro, falavam os candidatos ao Senado. Depois, o postulante ao governo do Estado. Dilma foi sempre a penúltima da fila. Reservaram-se os epílogos para Lula. Sob atmosfera apoteótica, o padrinho ofuscava a afilhada.
Lula fez por Dilma mais do que fizera por si mesmo nas cinco campanhas em que correra o país como candidato. Nunca antes na história do país um presidente da República jogou-se tanto numa campanha como Lula. Virou cabo eleitoral com dois anos de antecedência.
Impôs Dilma ao partido. Arrancou-a do gabinete. Levou-a ao meio-fio. Exibiu-a em comícios disfarçados de eventos oficiais. Pai do povo, converteu-a em mãe. Na noite deste sábado (30), Lula degustou o sucesso de sua criação: “Quando escolhi a Dilma, me chamavam de louco”, recordou.
Deu-se num diálogo telefônico que se seguiu à divulgação, no 'Jornal Nacional', dos últimos números do Datafolha e do Ibope. “Eu estava certo”, jactou-se Lula. Patrono de uma candidatura improvável, Lula escorou sua decisão em três pilares: o instinto aguçado, a vontade incontida e a popularidade inaudita.
A essa trinca de variáveis somou-se a mais bem estruturada campanha do PT na história das disputas eleitorais do partido. Afora as quase duas centenas de cabeças acomodadas na equipe de marketing, Dilma foi rodeada por cerca de 100 pessoas.
De secretários particulares a assessores de imprensa. De seguranças privados a uma trinca de agentes da Polícia Federal. De treinadora de mídia a fotógrafo. O cuidado, por extremado, estendeu-se dos sapatos aos fios de cabelo da candidata.
Cabeleireira pessoal de Dilma, Rose Paz cruzou o país como passageira invisível do Cessna Citation que serviu de meio de transporte à candidata. Na organização das viagens, o comitê importou o modelo da Presidência.
Escalões avançados chegavam nas cidades antes de Dilma. Preparavam a logística dos deslocamentos, recolhiam dados e identificavam previamente os desconhecidos que cruzariam o caminho da candidata.
Dilma dispôs de uma multiplicidade de anteparos. Mas nenhum escudo igualou-se a Lula. Coube a ele a tarefa de se interpor entre a pupila e as encrencas. O cabo eleitoral comandou a infantaria.
Defendeu Dilma dos ataques da oposição. Foi à TV para desarmar a armadilha aborto-religiosa. Segurou as rédeas do PMDB. No comitê de Dilma, a voz de Lula pingou dos lábios de Antonio Palocci, principal operador da candidatura oficial.
O coração da campanha bateu numa sintonia com a qual o petismo não estava habituado. As velhas disputas foram ao freezer. Palocci tocou de ouvido, como se diz, com os outros dois coordenadores do comitê: o presidente do PT, José Eduardo Dutra; e o deputado José Eduardo Cardoso (PT-SP).
No instante em que a eleição escorregou para o segundo turno, Lula interveio diretamente. Foi a um par de reuniões. Reinjetou ânimo na campanha. Queixou-se de falta de emoção na propaganda. Impôs seu retorno ao vídeo. E ajustou a alça de mira, focando em FHC.
Devagarinho, Dilma foi recuperando os votos que lhe fugiam desde setembro. Em parte pelos ajustes de sua campanha, em parte pelos desajustes do antagonista, Dilma foi ao último debate, exibido pela Globo na antevéspera da eleição, com outra cara. Rose arrumara-lhe o penteado. Lula ajeitara os índices das pesquisa.
Só o pé parecia incomodar Dilma. Depois do câncer linfático de 2009, a candidata incluiu na sua rotina as caminhadas matinais. Em Brasília, à beira do Lago Paranoá. Nos hotéis, na esteira.
Numa de suas viagens, Dilma entreteve-se com duas mulheres que tagarelavam ao seu lado no instante em que suava numa esteira do hotel Mofarrej, em São Paulo. Vencidos os 40 minutos de esforço que se antoimpusera, a candidata descuidou-se ao descer da máquina. Ganhou uma torção no pé direito e uma bota ortopédica.
Nos estúdios da Globo, calçou um reluzente par de sapatos pretos. Salto zero, como convinha a uma pessoa duplamente acidentada –na esteira e nas urnas do primeiro turno. A despeito dos cuidados, doía-lhe, ainda, o pé direito.
Confirmando-se as pesquisas, Dilma terá novas dores com que se preocupar. As divergências do PT serão descongeladas. Os apetites do PMDB aflorarão. Tonificados pelas urnas, partidos como o PSB exigirão nacos maiores de poder.
De resto, Dilma descerá das asas do luxuoso Cessna Citation da campanha para o chão escorradio do cotidiano administrativo de uma presidência sem Lula. Por ora, o estilo do virtual governo Dilma só é conhecido até certo ponto. O ponto de interrogação.
Escrito por Josias de Souza
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